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Artigos de Opinião

4 Dias no mato sem cachorro

Wilson Aquino*
Opinião -

Em meados dos anos 80 — julho de 1984, salvo engano — estourou um violento conflito entre índios e fazendeiros na região de Miranda, em Mato Grosso do Sul. Houve tiroteio, mortos e feridos, além de incêndios em aldeias e propriedades rurais. O clima era de guerra. Para conter a situação, deslocaram-se para lá policiais civis, militares e federais.

Na redação do Diário da Serra, nosso editor-chefe, Silvio Martins Martinez, decidiu enviar uma equipe para cobrir os fatos na manhã do dia seguinte. A missão coube a mim e ao fotógrafo Paulo Ribas, conduzidos pelo mais habilidoso, responsável e companheiro motorista com quem já trabalhei: meu xará, Wilson Rosa. O plano era simples: chegarmos cedo ao local, colher informações, registrar imagens e retornar a Campo Grande no final da tarde.

Não foi o que aconteceu.

Depois de chegarmos a Miranda, seguimos por um longo trecho de estradas vicinais até o acampamento das forças policiais, instalado em plena mata. A tensão era perceptível até entre os próprios policiais, pois os ataques podiam acontecer a qualquer momento, de qualquer dos lados. Sem possibilidade de manter contato com a redação, e diante da gravidade dos fatos, reuni minha equipe e tomamos juntos a decisão de permanecermos por mais tempo ali. A responsabilidade da notícia falou mais alto. Estávamos sem roupas extras, sem preparo para uma permanência longa, mas com a consciência de que não podíamos simplesmente voltar sem levar aos leitores a dimensão real do que se passava. Dormimos nos bancos do nosso velho Fusca, partilhamos refeições dos policiais, que nos receberam muito bem e aguardamos, sempre alertas. O Diário da Serra era o único veículo de imprensa do Estado fazendo a cobertura.

O clima, em vez de melhorar, piorou. Houve novos confrontos e a tensão cresceu ainda mais. A chuva torrencial e o frio não foram suficientes para arrefecer os ânimos. Assim, ficamos ali por quatro dias, sem direito sequer a um banho — quente ou frio. O jornalismo nos cobrava, e permanecemos firmes. A decisão de permanecer até ali foi dura, mas tomada em nome da verdade que tínhamos o dever de registrar.

Foram dias de sobrevivência. Dividíamos pequenas porções de comida com policiais, usávamos jornais como cobertores improvisados dentro do Fusca e enfrentávamos noites longas e frias. A cada estalo na mata, a incerteza de um possível ataque nos tirava o sono. O corpo sofria com o cansaço, mas o espírito permanecia aceso pela convicção de que estávamos ali para cumprir uma missão.

Não nego que em alguns momentos me questionei sobre até onde valia arriscar tanto em nome da notícia. Mas a resposta sempre vinha: o jornalismo não se faz à distância, nem com versões incompletas. Permanecemos porque sabíamos que, se recuássemos, a história seria contada por outros, talvez sem a fidelidade e a coragem necessárias.

A decisão de resistir também foi um exercício de coleguismo. Paulo Ribas, com sua câmera sempre pronta, e Wilson Rosa, com sua calma no volante e no trato, foram companheiros de trincheira. Havia entre nós um pacto silencioso, como ocorre ainda hoje nas equipes de jornalismo, principalmente os impressos e TV, quando se formam equipes que se tornam afinadas para as coberturas: não deixaríamos a verdade escapar, mesmo que isso custasse mais dias de sacrifício. Essa união foi essencial para suportarmos a pressão psicológica e física do ambiente hostil.

Ao final do quarto dia, a situação começou a dar sinais de controle, permitindo nossa saída do local, com um bom acervo fotográfico e de informações. Quando enfim retornamos, já em Miranda, deparamo-nos com outro grande caso policial. Conseguimos as primeiras fotos de quatro jovens turistas que viajavam pelo Pantanal e que foram brutalmente assassinados por coureiros — caçadores de jacarés que atuavam no tráfico de peles. Os rapazes e uma moça foram covardemente transformados em “tiro ao alvo” por puro divertimento dos caçadores. Enviamos os filmes e as informações a Campo Grande por meio de um motorista de ônibus interestadual e ficamos mais um dia em Miranda, acompanhando a caçada policial aos criminosos. A prisão só ocorreu dias depois, após troca de tiros: alguns caíram, outros fugiram e, salvo engano, apenas dois foram presos.

O então “major Rabelo”, hoje coronel da reserva Ângelo Rabelo, foi considerado herói nesses enfrentamentos. Corajoso, ele não hesitava em desafiar os bandos fortemente armados de coureiros que infestavam os rios e lagoas do Pantanal. Em um desses embates, seu piloteiro foi morto e ele recebeu um tiro que atravessou o ombro, deixando como sequela uma leve atrofia em sua mão. Nada disso, porém, foi suficiente para afastá-lo da luta.

Os coureiros eram temidos nacionalmente pela violência e pela destruição da fauna pantaneira. Além do tráfico, espalhavam carnificina e desrespeito à vida. Mas a persistência da polícia sul-mato-grossense, reforçada em homens e equipamentos, acabou prevalecendo e enfraquecendo a prática criminosa.

Quanto a mim, ainda guardo vívida a lembrança do retorno à minha casa, na noite do quinto dia. Ao sentir a água cair durante um longo e merecido banho, festejei em silêncio a sensação de missão cumprida. Mais do que higienizar o corpo, aquele banho simbolizou o alívio de ter atravessado dias de tensão e incerteza. Foram 4 dias no mato sem cachorro, mas com o coração cheio do compromisso que sempre guiou o meu ofício: contar a verdade, custe o que custar.

*Jornalista e Professor

 [email protected]

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