(Por Ricardo Ribeiro Feltrin, advogado)
Você não leu errado: “PCC” aqui não se refere ao crime organizado, mas sim à mais nova instituição política do Brasil, o Primeiro Comando do Cônjuge. Trata-se de uma nova função de “apoiar o cônjuge de Presidente da República” dada ao Gabinete Pessoal do Presidente da República, considerado “órgão essencial da Presidência” e que foi criada pelo Decreto presidencial nº 12.604/2025. Parece não haver nada tão afastado dos mandamentos da Constituição de 1988.
Segundo noticiado na imprensa, o órgão já conta com 189 servidores sob as ordens do “cônjuge presidencial” que poderá se embebedar junto a seu marido e esbanjar ainda mais das benesses estatais.
Uma espécie de gabinete paralelo que atua como conselho de influências, filtrador de agendas, logística pessoal e, em muitos casos, instrumento de poder (talvez o principal motivo dessa criação despudorada).
A noção pode soar absurda, mas é exatamente o que estamos vivendo: uma assessoria recém-instituída que toma corpo como “apoio institucional” à chamada “primeira-(d)ama”, mas que, em sua essência, atua como comando do cônjuge porque serve à pessoa, não ao Estado. E não sobra Inocência nisso: são 189 funcionários públicos hoje ocupando uma estrutura que não foi prevista na Constituição para prestar serviço a quem não detém cargo ou função pública formal, não foi sancionada por lei e foi erguida por decreto presidencial¹.
Quando se institui uma estrutura pública para beneficiar diretamente o cônjuge do chefe do Executivo com máquinas, pessoal, logística, sem que a lei nacional ou a Constituição reconheçam esse papel, está-se transformando a República em uma extensão dos laços familiares.
Esse “Primeiro Comando” é duplo: É “Primeiro”, porque é a primeira vez que, por decreto, se cria formalmente uma função de assessoria específica, elevando-a a um “comando” funcional do Estado. É “Comando do Cônjuge” porque, em vez de servir ao interesse coletivo, essa estrutura se subordina intimamente ao vínculo conjugal, capturando funcionários públicos que, em concurso público, jamais poderiam imaginar ter que prestar serviço ao marido ou à esposa do Presidente, por clara ausência de previsão constitucional ou legal.
Em um regime republicano minimamente saudável, tais atribuições teriam de passar por voto ou lei, não pela mera assinatura do Planalto. A República nunca previu “primeiras-damas com exércitos administrativos”, mas hoje somos levados a conviver com isso como se fosse normal.
É consenso, inclusive dentro da Advocacia-Geral da União, também parcialmente cooptada, que se admite certa atuação simbólica, voluntária, não remunerada do cônjuge presidencial, desde que sem compromissos formais ou estrutura institucional permanente. Mas aqui não estamos diante apenas de “apoiar uma visita cultural” ou “acompanhar uma visita a uma entidade assistencial”.
O Decreto em vigor já outorgou à assessoria do cônjuge, ou melhor, ao Primeiro Comando do Cônjuge uma série de atribuições administrativas contínuas, suportadas por pessoal, verba e função pública. Esse é o ponto em que “simbolismo” começa a devorar o caráter do Estado. E mais: os funcionários públicos do Estado são agora convocados a servir a uma pessoa, por motivo de casamento presidencial.
Para que isso pareça natural, o governo se embasa em uma combinação eficaz de símbolos e narrativas. “Representação simbólica”: uma expressão que torce o sentido da palavra “representação” para sugerir ação institucional onde não há formalidade legal. Ou seja, se há representação, ainda que simbólica, deve haver representados que outorgaram esse poder, mas quem outorgou poder para o cônjuge representar simbolicamente? Qual instrumento foi utilizado para conceder esse poder de representação?
“Interesse público associado ao cargo presidencial”: trata-se de artifício que tenta vincular indiretamente as agendas da cônjuge ao mandato presidencial, como se fossem indistintas.
“Transparência e publicidade”: promessa retórica para legitimar algo que, no fundo, está sendo implantado por decreto para operar em regime interno onde o público governado mal entende quem responde a quem.
Esse tipo de estratégia retórica é clássico: invoque-se a ideia de “missão pública”, adicione-se “transparência”, pendure-se a justificativa de “despachos oficiais” e pronto: uma medida extraordinária parece rotina. O leitor (e até muitos juristas menos atentos) acaba assimilando como algo aceitável até que se passe a enxergar, talvez muito tarde, o desvio realizado de propósito para transferir gradativamente poderes do representante eleito a seu cônjuge que não exerce nenhuma representação, nem mesmo simbólica por evidente inexistência de previsão constitucional ou legal desse tipo de representação.
Para enxergar mais claramente o quão atípico se torna o cenário brasileiro, basta comparar com algumas democracias ocidentais: nos EUA, a figura da “First Lady” com equipe e orçamento é vinculada ao “Congressional Budget”, ou seja, a um orçamento específico aprovado pelo Congresso Nacional e com fiscalização clara. Nenhum decreto poderia instituir um “gabinetinho” ao redor da esposa com poderes administrativos autônomos.
Na França, quando houve pressão para formalizar o papel da “Première Dame”, optou-se por uma Carta de Transparência meramente política, sem status legal, sem cargo, sem salário e a função continuou extralegal.
No México, Beatriz Gutiérrez Müller, esposa do governante de esquerda Obrador, recusou formalmente até mesmo a denominação “primeira-dama” e qualquer estrutura independente, sob o argumento de que a esposa do Presidente não é instituição de Estado e, por isso, ela não teve gabinete, não teve funcionários públicos à sua disposição, não exerceu funções formais.
No Chile, o governo de Boric, também de esquerda, reformou o organograma para extinguir estruturalmente o cargo simbólico da primeira-dama e transferiu as funções sociais para ministérios convencionais, uma escolha institucional que concretiza a impessoalidade (que é princípio constitucional da Administração Pública no Brasil).
Salta aos olhos o que ocorreu em Honduras: Rosa Elena Bonilla, ex-primeira-dama, foi condenada por desvio de verbas do seu gabinete informal, o que deixou claro o risco real de se criar aparato público ao redor de alguém que não foi eleito nem investido formalmente para funções públicas.
Talvez o mais indigesto nesse “Primeiro Comando do Cônjuge” seja perceber que o Brasil resolveu institucionalizar aquilo que, em outros tempos, bastava à influência doméstica ou ao carisma de bastidores. Eva Perón, na Argentina dos anos 1940, transformou devoção popular em poder político efetivo, governando de fato ao lado, e muitas vezes acima, do marido eleito, num espetáculo emocional de Estado que confundiu fé com governo.
Nancy Reagan, por outro lado, agia sob as cortinas da Casa Branca: sem cargo nem decreto, filtrava compromissos presidenciais, substituía assessores e até consultava astrólogos para decidir a agenda do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. Já nós, tropicais, fomos além. Aqui, não bastou a influência informal da figura do cônjuge presidencial: foi preciso criar uma função pública, com selo da União, gastos e 189 funcionários. Eva e Nancy influíam nas sombras; a nossa “primeira-dama-decreto” quer brilhas e esbanjar sob a luz do Diário Oficial.
Em nenhuma dessas repúblicas algum cônjuge, desprovido de base institucional, foi elevado por decreto a “Primeiro Comando”. No Brasil, o governante atual foi além: instituiu como função de Estado servir a uma pessoa específica como uma espécie de personalização normativa embutida que remete às monarquias absolutistas europeias do passado.
Se o Brasil aceitar esse modelo imposto pelo governante da vez, um precedente perigoso fica aberto: governos futuros poderão designar estruturas paralelas para quaisquer cônjuges, filhos, compadres ou “amigos ilustres”, alegando “funções simbólicas de representação”, trabalho de convencimento social que costuma vir acompanhado de apoio da mídia de massa que recebe vultosas verbas públicas para publicidade.
Uma vez mais, o Estado acaba por se tornar terreno fértil para o clientelismo familiar. Não se trata de uma crítica política, mas de uma advertência: a República não se sustenta como apartamento privado do governante e seu círculo íntimo sob qualquer ótica ou pretexto que se queira considerar. A lei não foi feita para privilegiar relações afetivas ou “simbólicas” (aliás, quem define essa suposta simbologia e quais seus limites?), e tampouco o Estado deve propiciar “famílias presidenciais” exercerem comando sem voto.
O “Primeiro Comando do Cônjuge” não é apenas um arranjo administrativo indevido. É um símbolo de decadência institucional cujos instrumentos públicos passam a servir o particular. Se formos tolerantes com esse desvio, estaremos afrouxando os limites da legalidade, banalizando o nepotismo e corroendo o que talvez reste de confiança na imparcialidade do Estado (caso ela ainda exista).
Na encruzilhada entre o Estado Democrático de Direito e o Estado de Favores privados, cabe a cada cidadão dizer que não aceita que a República sirva de vil e onerosa domesticação do Palácio do Planalto.