O artigo 140 do CTB (Código de Trânsito Brasileiro) estabelece que só quem souber ler e escrever pode obter a CNH (Carteira Nacional de Habilitação). Embora pareça uma exigência básica, essa regra ainda representa um obstáculo para muitos adultos analfabetos ou com baixa escolaridade em Mato Grosso do Sul, especialmente idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade.
Em MS, iniciativas regionais mostram como políticas públicas de alfabetização podem transformar a vida de quem busca a CNH como porta de entrada para novas oportunidades, ao mesmo tempo que evidenciam um longo caminho ainda a ser percorrido.

No Estado, não há um levantamento que aponte quantas pessoas deixam de tirar a habilitação por não atenderem a esse requisito. Tampouco existem provas adaptadas, como avaliação oral, para candidatos com baixa escolaridade.
Na prática, não é exigido um nível de escolaridade formal (como ter completado o Ensino Médio) para obtenção da CNH, mas sim a alfabetização para compreender a legislação de trânsito e realizar os exames teóricos e práticos.
Conforme o Detran-MS (Departamento Estadual de Trânsito de Mato Grosso do Sul), essa comprovação ocorre diretamente na prova teórica. Se o candidato tem mais de 18 anos, possui CPF, consegue ler as questões e ser aprovado, está apto a dirigir.
“A prova de legislação ocorre de forma on-line ou escrita, dependendo do município. Contudo, não há modalidade de prova oral ou qualquer outra avaliação adaptada para candidatos com baixa escolaridade”, esclarece o departamento.
CNH como motivação para voltar à escola
Nas salas de EJA (Educação de Jovens e Adultos), a busca pela CNH aparece como um dos motivos para o retorno aos estudos. A diretora-adjunta da Escola Municipal Osvaldo Cruz, Neusa Babichi Ferreira, relata que muitos alunos chegam ainda em processo de alfabetização, mas veem na habilitação uma meta de vida.
“Já tivemos vários casos de estudantes que ingressaram na EJA com esse objetivo. Eles chegam com sonhos diversos, mas a CNH aparece, com frequência, como uma motivação. Ao longo do percurso, vão descobrindo que aprender a ler, escrever e fazer contas básicas também abre novas portas”, explica Neusa.

Além do interesse direto pela habilitação, os professores percebem que o tema ajuda a despertar nos alunos um senso de transformação pessoal.
Técnico de educação para o trânsito da Semed (Secretaria Municipal de Educação), Altagno Pires explica que, para incentivar os estudantes que sonham com a CNH, a Semed, em parceria com o Detran-MS, desenvolve projetos com o Detran voltados justamente a esse público. A última atividade, realizada na quinta-feira (2), incluía a leitura de reportagens sobre trânsito e a criação de campanhas educativas pelos próprios estudantes da EJA.
“A ideia era trabalhar a conscientização e estimular o comportamento responsável no trânsito. Muitos já dirigem sem carteira, e esse contato com o tema acaba incentivando não só a alfabetização, mas também a regularização”, comenta.

Motivação e independência
Estudante da EJA, Naiari Silva, de 28 anos, foi uma das participantes do projeto de educação no trânsito e destaca que a iniciativa a incentivou a tirar a CNH.
“Eu nunca tinha participado de uma ação assim, mas achei o tema muito interessante, principalmente a importância do uso do cinto de segurança. Já tivemos um caso de acidente de trânsito na minha família por causa da falta do cinto, então tudo isso me motivou ainda mais, com a CNH ganho independência.”
‘Queremos desmistificar que tirar a CNH é difícil’

Gerente de projetos e campanhas do Detran-MS, Glaucimara Hova detalha que o projeto busca promover ações educativas voltadas a jovens e adultos, sem caráter punitivo ou fiscalizatório.
“Não estamos aqui para autuar. Procuramos despertar nos alunos a consciência e o interesse pelo trânsito. Usamos reportagens sobre temas diversos — como uso do celular ao volante — e pedimos que eles discutam e elaborem campanhas. Cada turma escolhe um caso, o que estimula a reflexão de forma prática”, detalha Glaucimara.
Segundo Glaucimara, o objetivo do projeto é ‘desmistificar a ideia de que tudo é muito difícil’ e mostrar aos participantes que, com apoio e acompanhamento, é possível superar as barreiras da alfabetização e conquistar a habilitação.
“Quando conversamos com eles, percebemos a troca de experiências entre diferentes gerações. Há esperança, motivação, e um aprendizado que vai além do trânsito; é sobre autonomia e segurança na vida”, conclui.

Burocracia faz motoristas se manterem na ilegalidade
Com uma abordagem didática, o programa alcança públicos diversos, desde jovens prestes a completar 18 anos até adultos e idosos, cada um com experiências de vida diferentes. Essa didática prática reflete diretamente na mudança de comportamento dos participantes. No entanto, ainda há motoristas que seguem na ilegalidade.
“Teve um senhor que contou que dirigia sem CNH porque não sabia ler nem escrever. Hoje, após participar das atividades, ele se sente motivado e confiante para regularizar a situação. Outro caso é o de uma senhora que, depois de perder alguém em um acidente, passou a usar sempre o cinto de segurança. É esse tipo de conscientização que buscamos”, relata Glaucimara.
Limitações e políticas públicas
Atualmente, a SED-MS (Secretaria de Estado de Educação) atende diretamente 164 pessoas privadas de liberdade e mantém uma turma de EJA voltada para mulheres nos anos iniciais. A maior parte da oferta, no entanto, é responsabilidade das redes municipais.
Segundo a pasta, os principais motivos apontados por jovens e adultos para retornar à escola são a conclusão do ensino médio, a chance de ingressar no ensino superior e a busca por melhores oportunidades de trabalho. A obtenção da CNH não aparece como justificativa formal nos registros, mas é reconhecida como motivação indireta por professores e diretores.
Embora não tenha uma metodologia específica voltada à alfabetização funcional de motoristas, a secretaria afirma ainda que trabalha a educação para o trânsito como tema transversal em sala de aula.
“Oferecemos a Educação para o trânsito como tema contemporâneo que perpassa todos os componentes curriculares, promovendo a formação de cidadãos mais responsáveis e empáticos no trânsito”, explica a pasta.
O exemplo do Ceará e a lacuna em MS
Enquanto Mato Grosso do Sul não possui um programa voltado para motoristas analfabetos, o Ceará lançou o projeto ABCDetran, que integra alfabetização e formação para a CNH. A iniciativa busca reduzir barreiras práticas para pessoas que desejam dirigir legalmente, mas enfrentam o obstáculo da leitura e escrita.
Em MS, houve uma tentativa semelhante. Em 2018, o Detran-MS criou um projeto em parceria com o Programa Brasil Alfabetizado, voltado a candidatos que não sabiam ler e escrever. A iniciativa, porém, acabou extinta em 2020, após parecer jurídico considerar a proposta fora da competência do órgão.
“O projeto era regido pela Portaria Detran-MS ‘N’ nº 23, de 24 de abril de 2018. No entanto, a portaria foi revogada pela PORTARIA DETRAN MS ‘N’ nº 90, de 11 de dezembro de 2020. A medida seguiu um parecer jurídico que inferiu que o projeto não era de competência do Detran-MS”.
Mesmo após a desvinculação com o Detran, a SED afirma que o Programa Brasil Alfabetizado segue atuando no âmbito do Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e pela qualificação da Educação de Jovens e Adultos, promovendo a erradicação do analfabetismo e contribuindo para a universalização do ensino fundamental no Brasil.
“O programa é desenvolvido em todo o território nacional, em regime de colaboração com o Distrito Federal e com cada um dos estados e dos municípios. Além disso, há atendimento prioritário a municípios que apresentam alta taxa de analfabetismo”.
Projetos ‘engavetados’

Em 2012, o Detran-MS e a SED lançaram o projeto Jovem Condutor, voltado a alunos do 2º e 3º anos do ensino médio. O programa oferecia aulas de educação para o trânsito no contraturno escolar. Ao completarem 18 anos, os participantes podiam realizar a prova teórica do processo de habilitação, sem a necessidade de frequentar o curso teórico em autoescolas.
O projeto contava com material didático totalmente elaborado pelo Detran-MS e estruturado em cinco módulos, totalizando 155 horas-aula. As aulas eram ministradas por professores qualificados como instrutores de trânsito, garantindo a formação teórica adequada aos futuros condutores.
Hoje, o Detran-MS afirma que não possui dados sobre quantos candidatos deixam de obter a CNH por analfabetismo. O órgão destaca que a legislação exige a leitura mínima de placas e instruções no trânsito — como “Pare” e “Devagar” —, e que a incapacidade de interpretar esses sinais pode colocar em risco condutores e terceiros.
Somente em 2025, 216 pessoas morreram em decorrência de acidentes de trânsito em Mato Grosso do Sul, conforme dados da Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública).
Perspectivas para o futuro
Enquanto isso, professores da EJA reforçam que, apesar de muitos adultos retomarem os estudos motivados pela habilitação, durante o processo acabam descobrindo novas perspectivas, como concluir o ensino médio ou até ingressar no ensino superior.
“Muitos voltam para a escola pensando só na CNH. Mas, no caminho, percebem que podem ir além, como terminar a educação básica e até sonhar com a faculdade”, destaca Altagno Pires.
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