Um mês inteiro para discutir a prevenção do suicídio, um dos maiores tabus sociais da atualidade. Setembro Amarelo é o nome da campanha, que remete à morte de Mike Emme, aos 17 anos, em 1994. Em seu funeral, familiares distribuíram fitas amarelas, em alusão ao veículo da mesma cor que o jovem havia restaurado.
De lá para cá, a campanha virou febre mundo afora. No Brasil, teve início em 2014, pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), em parceria com o CFM (Conselho Federal de Medicina). A escolha do mês se deu pelo Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, celebrado nesta quarta-feira (10).
Laços amarelos que remetem à iniciativa são fortemente explorados por empresas, órgãos públicos, seja nos ambientes laborais ou nas contas em redes sociais. A imprensa não fica de fora e reportagens especiais costumam ganhar espaço nos jornais. Contudo, seria o Setembro Amarelo uma estratégia efetiva para impactar as estatísticas de pessoas vítimas de suicídio?
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Na visão de profissionais da saúde mental, apesar do ‘Setembro Amarelo’ contribuir na sensibilização coletiva e na popularização do debate sobre o tema, a campanha, por si só, não é eficaz. Segundo a avaliação, toda a mobilização pode até surtir efeito simbólico, mas não reflete em impactos reais nos índices.
Além disso, os profissionais ressaltam que a discussão sobre saúde mental exige um olhar mais amplo sobre a forma como vivemos em sociedade, e deve ser um assunto tratado como prioridade durante todo o ano, não apenas em campanhas pontuais. Para além do acesso a psicólogos e psiquiatras, também é preciso levar em conta fatores sociais que influenciam diretamente o bem-estar, como condições de trabalho, educação, lazer e cultura.
Ações pontuais e sem continuidade
O psicoterapeuta Renisson Araújo avalia que a campanha do Setembro Amarelo iniciou com uma intensa divulgação e maior participação do poder público, o que contribuiu para que a discussão sobre o tema atingisse diversas esferas sociais.
No entanto, ele expressa que, atualmente, o movimento passou a se restringir a ações pontuais de empresas e organizações da sociedade civil. No ambiente de trabalho, por exemplo, a campanha se resume, muitas vezes, a uma palestra ou algumas horas a menos de expediente, sem impacto real ou transformação concreta.
Conforme o profissional, a principal crítica é a forma como a campanha é tratada, é a expectativa gerada sobre o tema, que infelizmente é esquecido após a chegada do mês de outubro. Ele endossa que, após dar luz ao assunto durante 30 dias, não há nenhuma ação contínua, que possa seguir oferecendo apoio às pessoas fragilizadas.
“A campanha fornece a esperança de que a pauta seja discutida, mas deixa o tema por isso. No mês de outubro, ninguém mais lembra do Setembro Amarelo e vida que segue. Acho que o pior aspecto é esse, porque você dá a sensação de que você vai olhar pra essa pessoa, você traz o assunto à tona, e a pessoa que está emocionalmente fragilizada, muitas vezes tem esperança, até começa a se comunicar, mas depois não tem nenhuma ação concreta para manter aquilo”, explica Renisson.
Segundo o psicoterapeuta, a principal falha da campanha está também em individualizar a responsabilidade do suicídio, tanto para empresas quanto para pessoas, como se ‘aprender’ a identificar os sinais de suicídio fosse suficiente para reduzir os índices. Sendo que, na verdade, isso depende de uma ação conjunta, que promova melhorias na qualidade de vida.
O psicólogo Walkes Jacques Vargas completa dizendo que, apesar de campanhas serem importantes, é necessário também o investimento em serviços para a população.
“A saúde mental precisa ter esse olhar também do contexto social. Por exemplo, o trabalho também é importante para ter saúde mental. Acesso à educação é importante para ter saúde mental. Lazer, cultura, tudo isso é importante para a gente ter uma melhor qualidade de vida e, consequentemente, ter saúde mental, então não basta só acessar um psicólogo e um médico”.
Campanha não gera impactos significativos
O psicoterapeuta Renisson Araújo recorda que a campanha surgiu por um motivo nobre, como uma iniciativa da sociedade civil para conscientizar e abrir espaços de diálogo sobre o suicídio, incluindo o luto enfrentando pelas famílias. No entanto, afirma que a o Setembro Amarelo acabou se tornando mais uma ação de marketing do que uma política pública efetiva.
“É uma data para, talvez, psicólogos e profissionais da saúde, de uma maneira geral, tentarem fazer alguma grana a mais no final do ano, ou empresas fingirem para elas e para os outros que estão fazendo alguma coisa, sem realmente mudar. E o poder público na mesma onda”, critica.
O profissional também critica a escolha simbólica do mês de setembro para a ação, já que este nem sequer é o período com maior índice de suicídios no Brasil. No caso de Mato Grosso do Sul, por exemplo, os meses de fevereiro, julho e agosto registram taxas mais altas, o que reforça a necessidade da discussão ser uma prática constante, e não restrita a um único mês.

Já o psicólogo Walkes Jacques Vargas critica o fato de que, muitas vezes, as campanhas não vêm acompanhadas de serviços de acolhimento. Ele destaca que famílias e pessoas enlutadas pelo suicídio podem vir a sofrer ainda mais em setembro, quando o tema ganha visibilidade sem que existam espaços adequados para oferecer apoio.
“A campanha vai sensibilizar a pessoa, para a pessoa saber que ela pode procurar um serviço quando ela sentir uma dor, um sofrimento, uma necessidade. Mas a gente tem que estar com o equipamento público fortalecido, disponível, a porta de entrada da saúde pública tem que estar aberta. E muitas vezes o que o usuário do SUS tem encontrado é fila de espera, a demanda gigante, falta de medicamento, principalmente com pacientes psiquiátricos”, revela.
Conforme Walkes, ao que cabe ao poder público, antes de investir em campanhas, é preciso fortalecer a rede de atenção psicossocial e o SUS (Sistema Único de Saúde). Afinal, conforme defende o profissional, campanhas como Setembro Amarelo só fazem algum sentido se houver acesso a serviços de saúde mental durante todo o ano. Caso contrário, a mobilização gerada durante o mês de setembro não vale de nada, se não houver atendimento e acolhimento real para quem precisa.
“Por exemplo, no caso da prefeitura aqui de Campo Grande, se eu não me engano, o último concurso público para psicólogos foi em 2017, antes da pandemia. Então, desde a pandemia para cá, a demanda aumentou, a população está cada vez mais em situação de sofrimento e ela não tem, muitas vezes, aonde recorrer. Então, eu acredito que garantir o acesso é o primeiro passo”, expressa.
Segundo o psicólogo, dados mais recentes mostram que cerca de 4 mil usuários do SUS, adultos, aguardam em fila por atendimento psicológico, além de mais de mil crianças e adolescentes na fila de espera para uma consulta psiquiátrica.
Procurada pela reportagem a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde) informou que a rede de saúde mental conta com leitos específicos para internação psiquiátrica, distribuídos entre unidades públicas e conveniadas. No entanto, não informou a quantidade em números.
Em relação a novos concursos públicos na área da saúde mental, a secretaria informou que há processos vigentes para contratação de psicólogos, com profissionais qualificados e aptos para convocação. Para psiquiatras, a Sesau mantém cadastro temporário aberto permanentemente, com convocações conforme a necessidade dos serviços.
Acesso aos atendimentos psiquiátricos nos CAPS
A rede de atendimento à saúde mental conta com profissionais de diversas categorias, incluindo médicos, psicólogos, enfermeiros, técnicos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, cuidadores, entre outros. Estes profissionais atuam nos CAPS, Ambulatório de Saúde Mental, Residências Terapêuticas, Unidades de Acolhimento e demais serviços da atenção psicossocial.
O acesso aos atendimentos psiquiátricos nos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), é realizado por demanda espontânea ou por encaminhamentos da rede de saúde, funcionando em regime de porta aberta, sem necessidade de agendamento prévio. Já as internações nas unidafes ocorrem de forma regulada, conforme avaliação clínica e disponibilidade.
Com relação às internações para tratamento de transtornos psicológicos, o acolhimento integral e transitório de crianças e adolescentes é indicado apenas quando todas as alternativas terapêuticas foram esgotadas, respeitando os limites técnicos de ocupação dos leitos disponíveis.
A fila de espera para atendimento psicológico é gerenciada conforme a ordem de acolhimento e avaliação clínica das equipes multiprofissionais dos CAPS, garantindo prioridade aos casos mais urgentes.
O que falta no SUS?
O psicólogo Walkes Jaques Vargas destaca que os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) são fundamentais ao promover atendimento gratuito à pessoas com transtornos mentais graves, no entanto, ainda são insuficientes.
Para ele, é necessário ampliar a rede de atenção psicossocial, oferecendo mais serviços de psicoterapia, programas de prevenção ao suicídio, redes com atendimento específico para crianças e adolescentes, além de unidades de acolhimento e centros de convivência.
Embora Campo Grande já possua muitas dessas iniciativas, ele observa que a cidade enfrenta déficit destes serviços, além de também precisar absorver a demanda dos municípios do interior, que não possuem estrutura adequada.
Atualmente, Mato Grosso do Sul possui 40 unidades de CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). A previsão do Governo do Estado é ampliar esta rede para 56 unidades até 2029, e levar a cobertura de saúde mental para 69 municípios. Conforme o site do CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde), Mato Grosso do Sul possui 153 leitos psiquiátricos oferecidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde), sendo 78 em Campo Grande.

Sociedade Vs. Poder público: quem deve sustentar o debate?
O psicólogo Walkes Jaques Vargas expressa que a sociedade possui uma parcela de contribuição fundamental para que o debate sobre a saúde mental seja contínuo, pois acredita que essa discussão faz parte de todas as esferas da vida.
“Acredito que a sociedade pode contribuir de várias maneiras. Desde a saúde até a educação, cultura, esporte. Em todos os ambientes dá para a gente falar de saúde mental se a gente olhar que a saúde mental é a forma como nós vivemos. Não é só procurar um médico, tomar remédio, fazer terapia, mas as nossas relações como um todo”, diz.
Walkes cita que a escola também é um bom lugar para inserir esse debate. Para ele, o ideal seria que as leis que preveem a presença de psicólogos e assistentes sociais na rede de educação básica fossem aplicadas. Com isso, o tema poderia ser discutido em sala de aula, projetos e outras atividades.
Outro ambiente fundamental são os locais de trabalho. O psicólogo ressalta a importância de ambientes laborais acolhedores, onde situações de assédio e violência não sejam naturalizadas.
Na visão do psicoterapeuta Renisson Araújo, a responsabilidade de tornar o debate sobre o suicídio perene não deve recair sobre a sociedade, e sim ser de total atribuição ao poder público. Ele justifica que, embora atitudes individuais, como não julgar e acolher quem sofre, sejam importantes, é o poder público quem tem condições de organizar a sociedade e implementar políticas públicas capazes de reduzir os índices.
Para exemplificar seu entendimento, ele cita de exemplo os altos números de suicídios entre policiais em Mato Grosso do Sul, que cresceram em 33% entre 2023 e 2024.
“A sociedade pode contribuir ao não recriminar os policiais, não pulverizar esse ódio, mas, em última instância, tem que fazer algo o poder público, melhorando a qualidade de vida, incentivando esses policiais a cuidarem da própria saúde mental, tendo um plano de carreira melhor. A sociedade tem muito pouco para fazer, porque ela não tem organização. Quem tem esse poder de organização, de coletivização, é o poder público”.
Em MS, mortes por suicídio perdem apenas para mortes no trânsito
Segundo dados apurados pelo psicoterapeuta Renisson Araújo, em Mato Grosso do Sul, os homens jovens são o grupo mais vulnerável ao suicídio. Em um panorama nacional, pessoas jovens, no geral, representam 20% dos casos no Brasil, enquanto em Mato Grosso do Sul, esse índice chega a 40%, sendo homens jovens quase 80% dos casos.
Renisson acrescenta, ainda, que o Estado têm destaque nos índices por conta do suicídio da população indígena. Além disso, o profissional expõe que muitas pessoas acreditam que altos índices de suicídio entre indígenas está ligado a um fator cultural. No entanto, não é isso que acontece.
“Isso é um traço do descaso do poder público, da violência no campo, de uma série de fatores. Apesar de ter uma maneira específica, uma forma de se tirar a própria vida dentro de certos tipos de cultura, como acontece com os indígenas aqui, isso não é um traço da cultura”, explica.
Em Mato Grosso do Sul, atualmente, o perfil mais suscetível a tirar a própria vida inclui jovens, indígenas e desempregados, principalmente nos três primeiros meses após a perda do trabalho. Outro recorte que chama atenção do psicoterapeuta é o fato de que 60% dos jovens que tiraram a própria vida não estavam em um relacionamento. “O que sugere que relacionamentos amorosos podem contribuir na proteção da saúde mental’, completa.
Em uma escala global, três a cada quatro suicídios ocorrem em países de baixa renda, o que indica que a pobreza e falta de condições materiais agravam o risco. Conforme explica Renisson, a dificuldade financeira aumenta o estresse diário, gera insegurança sobre o futuro e restringe o acesso a recursos que poderiam promover bem-estar, como atendimento psicológico, atividades físicas e até mesmo cuidados básicos de saúde.
Além disso, longas jornadas de trabalho e deslocamentos cansativos deixam as pessoas sem tempo e energia para cuidar de si. Esses fatores, juntos, ajudam a explicar por que as taxas de suicídio são mais altas em contextos de vulnerabilidade social e faixa etária.
“Se você não tem grana, o seu nível de estresse basal já é um pouco maior, porque você está sempre tenso conforme o mês vai se encerrando e o próximo mês vai chegando e tem contas para pagar e você não sabe de onde você vai tirar dinheiro. Você, muitas vezes, tem que se deslocar muito mais cedo para poder ir para o seu serviço, o que te expõe a risco no próprio trânsito, que, inclusive, é uma das causas que mais mata no Mato Grosso do Sul, o trânsito, especialmente para jovens. A segunda principal causa é suicídio”, expressa.
Em MS, ocorrências de suicídio quase superam crimes hediondos
Conforme dados da plataforma de estatísticas do Sigo, da Sejusp (Secretarial Estadual de Justiça e Segurança Pública), as ocorrência de suicídio registradas em 2025 no Mato Grosso do Sul, até o momento, quase superam as registradas por crimes hediondos.
Juntos, os casos de feminicídio, homicídio doloso, estupro de vulnerável seguido de óbito, lesão corporal seguida de morte, maus-tratos seguido de morte e latrocínio (roube seguido de morte), somam 274 ocorrências. Já os casos de suicídios chegaram a 211 ocorrências no Estado. Apenas 63 casos a menos que os seis crimes citados anteriormente.
O suicídio também mata mais pessoas que o trânsito no Estado. Este ano, 66 morreram vítimas de acidentes deste tipo em Mato Grosso do Sul, conforme consta na plataforma de dados públicos do Detran/MS (Departamento Estadual do Trânsito).
Diálogo salva vidas
Especialistas ressaltam que o diálogo salva vidas e ele pode ser feito entre familiares, amigos e especialistas, como psicólogos, terapeutas e médicos psiquiátricos. Há também entidades que prestam o serviço gratuitamente para facilitar o acesso da população, como:
- Grupo Amor Vida
O Grupo Amor Vida (GAV) presta um serviço gratuito de apoio emocional a pessoas em crise. O horário de funcionamento e das 7:00 às 23:00, inclusive sábados, domingos e feriados. Conte a ajuda também por e-mail: [email protected]. Mais informações no site.
- Centro de Valorização da Vida
O CVV (Centro de Valorização da Vida) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.
Você pode conversar com um voluntário do CVV ligando para 188 de todo o território nacional, 24 horas todos os dias de forma gratuita, ou enviar o email por este link. Você pode enviar uma carta ou conversar pessoalmente com um voluntário do CVV em horário comercial. Consulte os endereços dos postos aqui e acesse o site oficial neste link.
Além disso, o Jornal Midiamax publicou um guia, indicando onde encontrar atendimento psicológico gratuito ou com preços acessíveis em Campo Grande. Clique aqui para acessar o material na íntegra.
* Matéria editada às 14h59 de quarta-feira (10), para acrescimo de resposta da Prefeitura de Campo Grande aos questionamentos feitos pela reportagem.
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(Revisão: Bianca Iglesias)