A análise da tipologia criminal revela que o tráfico de drogas é a principal motivação para as prisões (40,4% dos casos), um índice quase 70% superior à média nacional, de 24%. Mais de 75,5% dos delitos foram cometidos sem violência ou grave ameaça. Estes dados demonstram que a “guerra às drogas” é o principal motor do sistema de justiça criminal local, alinhando-se a um padrão nacional que criminaliza de forma seletiva jovens negros e pobres, mas com uma intensidade ainda maior.
Trecho acima é parte do relatório preparado pelo Nucrim (Núcleo Criminal), braço da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, acerca de dados estatísticos sobre as prisões efetuadas em Campo Grande, a capital sul-mato-grossense, referentes ao período de 1º de janeiro de 2024 a 30 de junho deste ano de 2025.
O estudo, cuja a autoria e revisão é de Matheus Silva Quirino e Pablo Polese e a tabulação e visualização de dadose Fellipe Lopes Porto, produzido acerca das prisões, surgiu a partir de levantamento e com a intenção de subsidiar o evento que ocorreu em Campo Grande no início deste mês “10 anos de audiências de custódia no Brasil”.
Conforme a apuração da Defensoria Pública, o levantamento em questão evidencia a sobreposição entre o sistema de justiça criminal e a saúde pública. Ao menos 51% dos custodiados afirmaram fazer uso de substâncias psicoativas, e 16% fazem uso de medicação regular, sendo mais da metade de uso controlado. O sistema penal atua como porta de entrada para indivíduos com problemas de saúde que demandam atenção contínua, oferecendo uma resposta punitiva a uma crise que em muitos casos demandaria uma abordagem integrada com o sistema de saúde, a exemplo de modelos de Justiça Terapêutica e Redução de Danos já implementados com sucesso em outras partes do Brasil.
Segue a pesquisa: em síntese, os dados de Campo Grande revelam um paradoxo: enquanto o sistema demonstra uma capacidade ligeiramente superior à média nacional para evitar prisões preventivas – em grande parte devido à atuação massiva da Defensoria Pública –, ele falha catastroficamente em sua missão de controlar a violência estatal. A audiência de custódia, dez anos após sua implementação, reflete e reforça as desigualdades estruturais da sociedade, operando sob uma lógica de seletividade racial e priorizando a repressão a crimes não violentos, enquanto desafios críticos como a violência policial e o adequado enquadramento de questões de saúde permanecem sem respostas efetivas.
Sobre o surgimento da Custódia, o estudo diz que a implementação das audiências de custódia no Brasil, formalizada pela Resolução nº 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), representou um marco no ordenamento jurídico pátrio. Inspirado em tratados internacionais de direitos humanos, como o Pacto de São José da Costa Rica, o instituto visa garantir que toda pessoa presa em flagrante seja apresentada, em até 24 horas, a uma autoridade judicial. Seus objetivos primordiais são coibir a prática de tortura e maus-tratos no ato da prisão e realizar uma análise qualificada sobre a necessidade da manutenção da custódia cautelar, funcionando como um filtro contra o encarceramento arbitrário e desnecessário.
Indicador direto
A pesquisa conta, também, que a principal função da audiência de custódia é permitir que um juiz avalie, de forma imediata e com a presença do acusado, a legalidade e a necessidade da prisão. A decisão judicial proferida neste ato é, portanto, o indicador mais direto do impacto do instituto sobre as taxas de encarceramento provisório. Dos 4.941 casos analisados, 2.700 resultaram na conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, o que corresponde a uma taxa de 54,6%. Em contrapartida, a liberdade provisória foi concedida em 2.141 casos (43,3%). O relaxamento da prisão, que ocorre quando se constata ilegalidade no flagrante, foi determinado em apenas 70 casos, representando 1,4% do total.
Este elevado índice de conversão em prisão preventiva, embora ligeiramente inferior à média nacional de 59%, diz o estudo, suscita uma reflexão sobre o papel que a audiência de custódia vem desempenhando. O instituto foi concebido para racionalizar o uso da prisão cautelar, que deveria ser excepcional. No entanto, os dados sugerem que, em mais da metade dos casos, a audiência serve para formalizar e legitimar a manutenção da pessoa no superlotado sistema carcerário de Mato Grosso do Sul, que opera com o dobro de sua capacidade e um déficit de 14.635 vagas.4 A situação torna-se particularmente grave ao considerar a própria razão de ser do instituto: atuar como uma barreira judicial para prisões desnecessárias, analisando a legalidade da detenção e a necessidade real da medida privativa de liberdade. Os números sugerem que, em Mato Grosso do Sul, essa função primordial foi subvertida. Em vez de filtrar, a audiência de custódia tem servido majoritariamente para referendar a prisão, contribuindo para a perpetuação de um quadro de superlotação e violação de direitos. O desafio, portanto, é resgatar a finalidade essencial deste instrumento, para que ele deixe de ser uma mera etapa burocrática e se torne um pilar efetivo de uma política criminal mais justa e racional.
Diferença expressiva
O levantamento da Defensoria cita, ainda, sobre a taxa de conversão em prisão revela diferenças expressivas no tratamento dado a indivíduos conforme seu histórico penal.
Em primeiro lugar, observa-se que os reincidentes apresentam a maior taxa de conversão em prisão, chegando a 76%. Esse resultado confirma a tendência de maior rigor penal aplicado a quem já possui histórico criminal, reforçando a ideia de que o sistema de justiça adota a reincidência como critério central de avaliação do risco social e da necessidade de segregação.
Entre os indivíduos primários, ou seja, sem antecedentes criminais, a taxa registrada foi de 45%. Ainda que significativamente menor do que a dos reincidentes, esse número chama a atenção, pois demonstra que quase metade das pessoas sem histórico criminal também acabam tendo suas prisões confirmadas. Esse dado sugere um cenário de endurecimento das decisões judiciais.
De forma geral, os dados demonstram que o histórico criminal é um fator determinante para o resultado da conversão em prisão. Contudo, também apontam para a existência de uma tendência punitiva significativa mesmo em relação aos primários, além de potenciais distorções nos casos em que não há informação adequada sobre antecedentes.
Importância da Defensoria
Diz a pesquisa, que a atuação da defesa é um pilar essencial para a legalidade e a justiça da audiência de custódia. No período analisado, a Defensoria Pública foi responsável pela representação legal em 3.138 audiências (63,5%), enquanto advogados particulares atuaram em 1.803 casos (36,5%). Essa prevalência demonstra o papel central da Defensoria Pública na garantia do acesso à justiça para a população mais vulnerável, que constitui o alvo preferencial do sistema penal.
Marcadores sociais
A esmagadora maioria dos custodiados da amostra, aponta o levantamento, é do sexo masculino (88,5%). Quanto à idade, a segmentação por faixa etária aponta para uma criminalização da juventude, com jovens adultos de 18 a 29 anos correspondendo a 48,4% de todas as pessoas levadas à audiência O levantamento contempla dados estatísticos referentes ao período 01/01/2024 a 30/06/2025, na comarca de Campo Grande.
Segue o estudo: o marcador mais eloquente, contudo, é a raça/cor. Indivíduos negros (pretos e pardos) representam 64,5% dos custodiados, enquanto a população negra em Campo Grande é de 52,66% (45,42% de pardos e 7,24% de pretos), segundo o IBGE de 2022.6 Em contrapartida, indivíduos brancos, que são 45,14% da população municipal, correspondem a 34,8% dos custodiados. Essa desproporcionalidade não é um acaso estatístico, mas um indicativo da operação sistêmica do perfilamento racial.
A situação da população indígena na capital, que representa 1,06% dos habitantes, apresenta uma dinâmica distinta, uma vez que apenas 20 dos mais de 4.000 custodiados se declararam indígenas. Desses 20, apenas 10 obtiveram relaxamento da prisão, o que provavelmente indica desrespeito às normas e diretrizes específicas sobre o trato criminal do indígena, em especial a Resolução nº 287 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2019, sustentou o estudo.
Vulnerabilidade
A seletividade penal manifesta-se também em um claro recorte de classe entre os custodiados. A baixa escolaridade é uma característica central: 42% não concluíram o ensino fundamental. Além disso, um dado alarmante é que 73,8% dos custodiados não possuem o ensino médio completo, o que evidencia uma profunda exclusão educacional. Apenas 6,3% possuem ensino superior. Essa precariedade educacional se reflete diretamente na situação ocupacional.
Revela o levantamento, que a grande maioria está no mercado de trabalho informal (59,3%) ou desempregada (13,9%). Apenas 9,9% possuem emprego formal. Essa realidade contrasta com as baixas taxas de desemprego oficiais do estado e da capital, revelando que o crescimento econômico não alcança a parcela da população que é alvo do sistema criminal. O sistema de justiça interage com um subgrupo específico, marginalizado e excluído do mercado de trabalho formal.
Tipologia dos crimes
A análise dos tipos penais que motivam as prisões em flagrante, apurou o levantamento da Defensoria, revela um foco desproporcional na repressão a crimes não violentos, com destaque absoluto para o tráfico de drogas, que se consolida como o principal vetor de encarceramento na região.
De um total de 4.941 prisões, 1.552 foram motivadas pela imputação do crime de tráfico de drogas, o que representa 31,4% de todas as ocorrências. Em segundo lugar, aparece o furto, com 21,4%. Crimes que envolvem violência contra a pessoa, como roubo (4,7%) e homicídio (1,8%), aparecem com frequência muito menor.
Droga: dados daqui superam os do país
A pesquisa conta ainda que a prevalência de crimes não violentos é um dado central, visto que 75,5% das infrações imputadas não envolveram violência ou grave ameaça. Este achado localiza Campo Grande dentro de uma tendência nacional, mas com uma intensidade preocupante. Enquanto o tráfico de drogas responde por 24% das audiências de custódia no Brasil, em Campo Grande este índice é de 31,4%, uma priorização 30,8% superior à média nacional. Isso demonstra que a “guerra às drogas” não é apenas uma política seguida, mas o eixo central e desproporcional que mobiliza o aparato de segurança e justiça da comarca.
Violência policial
Usuários de drogas são ainda mais vulneráveis à violência policial: a taxa de violência reportada por eles é de 26%, um índice 85,7% maior que a taxa de 14% registrada entre não usuários. Os dados apontam maior incidência de violência policial contra sujeitos usuários de drogas, o que denota processos de estigmatização de um problema de saúde pública.
A gravidade desse quadro é amplificada pela ínfima consequência jurídica desses relatos de violência e tortura. A enorme disparidade entre a alta incidência de violência (15,4% de relatos feitos em juízo) e a baixa taxa de relaxamento de prisões por ilegalidade (1,4%) é o ponto-chave, demonstrando que, na esmagadora maioria dos casos, a alegação de agressão não é suficiente para invalidar o ato da prisão. O sistema trata a violência não como um vício que macula a legalidade da própria detenção, mas como uma ocorrência paralela, a ser apurada em um procedimento secundário.
Essa dissociação processual banaliza a violência estatal. O relato é formalmente registrado, mas o sistema prossegue com a análise da necessidade da prisão como se nada tivesse acontecido. Essa prática envia uma mensagem perigosa aos agentes de segurança: a violência pode até ser reportada, mas não comprometerá o resultado final da prisão. Assim, a audiência de custódia em Campo Grande, embora sirva como um canal para dar voz à vítima, revela-se ineficiente como ferramenta para controlar a atividade policial, falhando em seu propósito mais elementar.